sexta-feira, 2 de maio de 2014

Espectro político, mentes cativas e idolatria


Tirado de http://www.teologiabrasileira.com.br/teologiadet.asp?codigo=381


Aquele nosso inimigo era leão quando se enfurecia abertamente; agora é dragão quando ocultamente arma ciladas. (...) Como a nossos pais era necessária a paciência no combate contra o leão, assim precisamos da vigilância contra o dragão. No entanto, a perseguição, seja do leão, seja do dragão nunca cessa para a Igreja; e é mais temível quando engana do que quando se enfurece. 

Naquele tempo queria forçar os cristãos a negarem a Cristo; agora ensina os cristãos a negarem a Cristo; então coagia, agora ensina. Então introduzia violências; agora, insídias. Aparecia então furioso, agora mostra-se insinuante e dificilmente aparenta erro.1 


I. Esquerda e direita
Diante do debate político ora em curso, é necessário se definir o que vem a ser “direita” e “esquerda”. A esquerda pode ser definida como aquele modelo do espectro político em que há pouca ou nenhuma liberdade pessoal e econômica, em que o Estado ou partido ganha uma dimensão transcendente, agindo para estender seu domínio sobre todas as esferas da sociedade. Por outro lado, a direita privilegia a liberdade pessoal e econômica, e a garantia dos direitos individuais, sendo os limites o respeito à vida, à propriedade e à liberdade dos demais.2 Tais termos ganharam este significado após o começo da Guerra Fria.

No Brasil, convencionou-se tratar como “direita” o regime militar, que tomou o poder no Brasil entre 1964-1985, e como “esquerda” os grupos que se opuseram às forças armadas e almejavam um regime socialista. Curiosamente, tanto os militares como a esquerda compartilhavam o autoritarismo e o desenvolvimentismo intervencionista. Mas, se a direita assume como absoluta a valorização do indivíduo, como este sistema pode se degenerar em autoritarismo ou totalitarismo? Há exemplos históricos de regimes autoritários ou totalitários que afirmaram a liberdade individual? Na verdade, não. Antes, foram regimes esquerdistas que almejaram controlar (Gleichschaltung) firmemente todas as esferas da sociedade (família, artes, esportes, igreja, economia e imprensa), a partir da noção da transcendência do Estado/Partido.3 

Paul e Raphael Freston, no artigo “De esquerda ou de direita, sejamos inteligentes e cristãos”,4 citando Norberto Bobbio, definem a direita como o espectro político que “enfatiza o ideal da liberdade individual”. Todavia, antes, eles escreveram que se ignora “os exemplos – muito mais numerosos – de autoritarismo de direita”. Porém, a sugestão ou afirmação de que o nazismo, o fascismo e as ditaduras militares da América Latina das décadas de 1960-1980 representam a “direita” é baseada numa contradição entre definição conceitual e realidade histórica.5 O fato é que os ditadores mais cruéis da história do século XX foram esquerdistas: Lênin e Stalin (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), Adolf Hitler (Alemanha) e Walter Ulbricht (Alemanha Oriental), Nicolae Ceauşescu (Romênia), Pol-Pot (Cambodja), Hồ Chí Minh (China). Cuba, Coreia do Norte e Venezuela são hoje estados-modelos de esquerdismo.6 

Nestes debates, a esquerda nunca é comparada à direita. A armadilha do discurso da esquerda é comparar uma ideia “perfeita” com a realidade, como se isso fosse prova da superioridade esquerdista. Porém, a honestidade intelectual exige que se compare o socialismo real com o capitalismo real. Nesse caso, fica escancarada a inferioridade da esquerda. Pois, como escreve Denis Rosenfield, a comparação “deveria ser entre a Alemanha [Ocidental] capitalista e a [Alemanha Oriental] socialista, ou ainda, entre a Coreia [do Sul] capitalista e a [Coreia do Norte] socialista”, mas a comparação é filtrada por uma “mentalidade religiosa”, “teológico-política”, onde se compara a direita real “com a ideia do socialismo, forjada por aqueles que lhe atribuem todas as perfeições”.

Isto é equivalente a comparar uma sociedade perfeita a uma imperfeita, ou ainda, a comparar o homem a Deus. É claro que o homem, com suas imperfeições, sairá sempre perdendo quando comparado a Deus. O mesmo destino teria a comparação entre uma sociedade perfeita (ideal) e uma imperfeita (real). (...) Ou seja, atribui-se ao socialismo todas as perfeições e, de posse destes atributos, passa-se a verificar se eles ‘existem’ no capitalismo.7 

Wolfhart Pannenberg lembra que devemos ter em mente que o “anticristo se manifesta (...) particularmente em doutrinas intramundanas [utópicas] de redenção e salvação, às quais as pessoas das sociedades modernas estão expostas”. Na escatologia das utopias intramundanas “explicitaram-se, pois, as consequências do aproveitamento funcionalista dos indivíduos (...), particularmente no caso do marxismo pelo fato de a felicidade dos agora vivos ser sacrificada sem escrúpulos em nome do pretenso alvo da humanidade”, em que “apenas os indivíduos da geração então vivente poderiam participar” deste “milênio secularizado”. E o contraste entre esta utopia e a esperança ensinada pela fé cristã é claramente estabelecido:

Em toda escatologia intramundana [como o marxismo] a consumação (supostamente) geral tem de ser buscada e afirmada à custa dos indivíduos [em que ‘os indivíduos de gerações passadas’ não ‘participarão da concretização futura de sua destinação’]. Essa é a estrutura anticristã da escatologia intramundana. Em contrapartida, a escatologia cristã preserva o vínculo indissolúvel de destinação individual e geral da humanidade. Através da glorificação dos indivíduos de mãos dadas com a glorificação do Pai e do Filho por eles, se concretizará o reino de Deus e será não apenas consumada, mas também aceita em geral a justificação de Deus perante os sofrimentos do mundo.8 

Então, diferente do que se apregoa, partidos de esquerda e extrema-esquerda não são de orientação democrática. Suas propostas são inspiradas na ideia do Estado coercitivo, julgador e punidor. Não reconhecem a dinâmica de equilíbrio dos segmentos da sociedade e das instituições republicanas. Por pensarem desse modo, facilmente são corrompidos pela ideia de que são os “donos da verdade” e únicos porta-vozes da justiça.9 

Aliás, a degeneração institucional, a perseguição a jornalistas e o uso de violência e prisões arbitrárias para tentar sufocar os protestos por democracia na Venezuela torna o silêncio de setores da imprensa e do governo esquerdista brasileiro indigno e cúmplice.10 O incrível é que só na América Latina esta devoção ao esquerdismo sobrevive. As nações latino-americanas tornaram-se, de fato, a vanguarda do atraso.

II. Liberalismo e democracia
Ainda que a divisão entre direita e esquerda tenha se tornado lugar comum no debate político no Pós-Guerra e Guerra Fria, só sobrevivem hoje na cultura norte-americana com mais ou menos consistência ideológica. E deve-se lembrar de que o sistema bipartidário dos Estados Unidos foi uma criação dos Pais Fundadores, para que o sistema bloqueasse qualquer radicalismo político. Hoje o sistema entrou “em curto” nos Estados Unidos, especialmente porque Deus, que era importante no pensamento político dos Pais Fundadores, foi melancolicamente afastado para a esfera privada por dirigentes dos partidos Republicano e Democrata.11 

Parece que na cultura europeia e brasileira talvez faça mais sentido falar em termos de “liberal” e “antiliberal”.12 A partir de tal paradigma, pode-se perceber que há incrustada no país uma mentalidade antiliberal, entre as elites (coronéis, famílias, conglomerados) e governo (qualquer que seja), que se caracteriza por protecionismo, economia dirigida e centralizada, ódio feroz às privatizações e ao mercado, alta taxa de impostos, pacto a favor do estado e contra as liberdades fundamentais do povo/indivíduos – conceitos associados, tradicionalmente, à esquerda. É importante notar que todos os governos a partir da proclamação da república no Brasil foram antiliberais e populistas – uma marca da política de toda a América Latina. Isso se aplica especialmente a Deodoro da Fonseca, Floriano Peixoto, Getúlio Vargas, o regime militar, Fernando Collor, Lula e Dilma Rousseff.13 

Essa mentalidade antiliberal também se revela na estrutura estatal. O estado brasileiro interfere e intervém em todas as esferas da sociedade (família, artes, esportes, igreja, economia e imprensa). Porém, tudo o que o estado faz é tradicionalmente marcado por ineficiência, incompetência e corrupção. E, num caso de deslocamento da realidade, “ongueiros” profissionais, políticos e “ativistas” ligados a partidos de esquerda e extrema-esquerda como PT, PSOL e PSTU dizem que o país precisa de mais Estado! 

Por outro lado, o liberalismo preconiza que se precisa de menos Estado, e que este seja enxuto e eficaz; a redução da interferência do Estado na economia ao mínimo necessário; a defesa da propriedade privada; a privatização das empresas estatais e de serviços públicos que possam ser oferecidos pela iniciativa privada; o livre mercado; e a redução das despesas do governo com a consequente redução da carga tributária. Assim como afirma o respeito ao Império da Lei e às liberdades individuais; à iniciativa privada; às diversas esferas que compõem a sociedade; e o fomento às estruturas mediadoras (intermediate bodies). Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, Austrália, Nova Zelândia, Japão e Coreia do Sul, entre outros, são guiados por ideais liberais em maior ou menor grau – e o resultado está à vista de todos.14

III. “Geração Coca-Cola”
Diante dessas considerações, é interessante identificar quais os motivos da tendência esquerdista entre os jovens. Estes parecem pertencer à classe alta ou média alta, estudam em universidades estaduais ou federais e recebem bolsas governamentais para (não raro) estudar no exterior. Para eles, os proletários, por viverem para o trabalho, não têm consciência de seu estado de escravidão. E são os membros desta nova classe de “homens novos” que poderão não somente iluminar, mas guiar as massas na luta contra a opressão. 

O mundo passa a ser interpretado a partir de uma “nova moral”, que opõe estes que almejam um mundo melhor contra a mentalidade rígida da sociedade. Portanto, o mundo é dividido em opressores e oprimidos, onde todos os bons são oprimidos, todos os que discordam são opressores, e estes devem ser cooptados, silenciados ou eliminados.15 A complexidade social é reduzida a uma luta entre o bem e o mal, uma luta entre o povo e as elites. Não raro, os trabalhadores são tratados como “massa alienada” por não os apoiar, rotulados como gente que “não quer mudar” e que não enxerga “a luta por mudança”. Curiosamente, durante a Guerra Fria, na Polônia e na Alemanha Oriental, estes idealistas eram chamados pelo proletariado, com cinismo, de “burgueses vermelhos”. A mesma repulsa já se evidencia aqui no Brasil, especialmente por parte das camadas mais baixas da sociedade.16 

Urge estudar as conexões de Black Blocs (mascarados vestidos de preto e armados com bombas, coquetéis molotov, pedras e paus) com partidos da esquerda e extrema-esquerda, como o PSOL.17 Quem financia e orienta os Black Blocs? Quem lhes presta assessoria jurídica? O modus operandi desta milícia é velho, antiquado, nada diferente das forças de choque fascistas (Itália, 1920), nazistas (Alemanha, 1930) e esquerdistas (Alemanha, 1970-1998) presentes na história da Europa no século XX.18 Também há similaridades com o procedimento de vários grupos de guerrilha no Brasil durante a ditadura, tais como a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares).19 Os Black Blocs fazem ressurgir a violência em manifestações nas ruas justamente em um momento de ascensão de um discurso de intolerância e ódio em relação às principais instituições que dão sentido a uma democracia, vista por estes como um sistema burguês tirânico.20 

Não apareceu nas páginas destes grupos ou partidos uma “nota de condolências” ou uma referência à morte do cinegrafista Santiago Andrade, da TV Bandeirantes.21 Os que escreveram nas páginas do grupo sugeriam que a tragédia foi um erro “das empresas de comunicação” ou culpa do Estado. Ou rebateram com a lembrança de “tudo que a Polícia Militar já fez”, como um exemplo de “contraviolência”. Nisso também lembram os antigos guerrilheiros, que justificavam suas ações violentas com o termo “represália”.22 Assim sendo, os partidos que apoiam os Black Blocs não têm lastro moral para criticar os “justiceiros” do bairro do Flamengo-RJ.23 Ora, em um país sob uma carta constitucional, a lei não vale para todos, igualmente? 24

Deste modo, parece que a violência dos Black Blocs só serve ao governo federal do PT, pois, além de jamais ostentar cartazes ou gritar palavras de ordem contra a falência da saúde e da educação, esvazia as manifestações legítimas com sua violência. Do “milhão”, as passeatas recuaram para os milhares e, finalmente, as centenas, como nas últimas ocasiões. 

Espantam-me cada vez mais os rumos da esquerda brasileira. Em vez de aproveitar a oportunidade de sua passagem pelo poder e pôr em prática os ideais de educação, conscientização e espírito de coletividade e trabalho (marcas registradas das promessas socialistas), eles preferem disseminar entre os jovens um espírito de revolta, ignorância e demagogia. Como nota Demétrio Magnoli, “há algo de profundamente errado com um país incapaz de enxergar a face do mal, quando ela se esconde atrás da máscara de uma ideologia”.25 

Alguns destes jovens associados à esquerda se identificam como cristãos, mas possuem mais conexão com grupos paraeclesiásticos do que com igrejas locais. Estes cristãos que militam em partidos e grupos de esquerda e extrema-esquerda se autodenominam no Brasil de “cristãos progressistas”. Curiosa – e reveladoramente – os católicos poloneses que apoiavam os nazistas, antes da II Guerra, e os comunistas, no Pós-Guerra, também se chamavam de “cristãos progressistas”. 

O que parece é que a ausência do “totalmente outro” (totaliter aliter) leva pessoas a adotar uma ideologia que almeja transcendência, e que supostamente as auxilia a superar as contradições de uma sociedade existencialmente opressiva, satisfazendo a “preocupação suprema” de suas vidas, o sonho de um “outro mundo possível”.26 Portanto, uma pergunta se impõe aos pregadores e às comunidades cristãs: como responder a este anseio por algo além e acima da criação, que todas as pessoas almejam? Como satisfazer tal desejo, levando pessoas da idolatria à “transcendência desviada”, isto é, ao ente estatal e a ideologia (de direita ou de esquerda), para o culto ao Deus todo-poderoso, o “totalmente outro”, que se revela apenas nas Escrituras Sagradas? Será que na atualidade o evangelho, as boas novas de Deus em Cristo – morto por nossos pecados e ressuscitado para nossa redenção –, tem sido oferecido com paixão e dependência do Espírito Santo? O Deus-Trindade é oferecido como o único que pode satisfazer a “preocupação suprema” que todas as pessoas experimentam?

IV. “Não terás outros deuses diante de mim” 
A mentalidade esquerdista antiliberal é binária: “nós” e “eles”, os “bons” e os “maus”, os revolucionários e os reacionários, a esquerda e a direita. Esquerdistas não conseguem pensar em termos de gradações.27 Então, se alguém os critica, este deve ser, forçosamente, de “direita”. E acaba-se o debate, pois o esquerdista, para equalizar o confronto, começará a falar dos problemas da suposta direita no Brasil – como se houvesse de fato uma direita organizada e partidos políticos liberais no país. E, de forma típica, em vez de colocar argumento contra argumento, o esquerdista usará o discurso da vitimização ou do constrangimento moral/espiritual para se evadir das profundas contradições de seu sistema. Ou apelará para a difamação pura e simples.

Só que “o marxismo”, como escreveu Richard Sturz, “não passa de uma heresia ao cristianismo. Em vez de abolir a religião, o marxismo tornou-se uma religião secular. Seus ensinos são apresentados como substitutos para as doutrinas cristãs”28. Esta elevação transcendental da ideologia e a incapacidade de autocrítica revela na esquerda uma lealdade idolátrica.

Os cristãos, que buscam confessar sua fé em submissão às Escrituras, creem que há um só Senhor e Rei, o único Deus todo-poderoso. Os cristãos são súditos do “bendito e único Soberano, o Rei dos reis e Senhor dos senhores” (1Tm 6.15). E esperam a “pátria [que] está nos céus”, de onde aguardam “o Salvador, o Senhor Jesus Cristo” (Fp 3.20), o único que traz o juízo e a salvação para toda a sociedade. 

Os cristãos não dividem sua lealdade com um Estado/partido/governo que requer fidelidade religiosa, pois os cristãos sabem que tal lealdade é idolatria, uma quebra do primeiro mandamento.29 Portanto, os cristãos têm a liberdade – que mesmo os melhores entre os incrédulos não têm – de criticar qualquer sistema político, qualquer ideologia, pois eles o fazem a partir da crença de que somente o Senhor Deus tem o direito de comandar todas as esferas da sociedade. Nenhum governo ou partido recebeu este direito. E os cristãos também creem que governos e partidos que anseiam ser totais deixam de ser a “autoridade ordenada por Deus” (Rm 13.1-7),30 para se tornar “uma besta” que recebeu “seu trono e grande autoridade” do dragão (Ap 13.1-18). E diante desta, a resposta cristã é: “Antes, importa obedecer a Deus do que aos homens” (At 5.29).

Portanto, o autoritarismo e o totalitarismo precisam ser resistidos pelos cristãos, por todos os meios legítimos. E, para tanto, precisamos perguntar: “Se o cristão crê que Deus é o único rei e senhor absoluto, ele pode entregar sua lealdade ao partido ou ao Estado autoritário ou totalitário?”. A resposta é: “Não”! É incompatível alguém declarar que adora a Deus como o Senhor que fala apenas por meio de sua Palavra e tornar-se servil a um Estado iníquo. Isso implica que um cristão que se submete a tal Estado coloca-se numa posição contrária à Escritura, tornando-se meramente “o lacaio sagrado do governo”.31 

Geralmente – mas não exclusivamente – são teólogos liberais que apoiam o esquerdismo. E estes são os que descartam as Escrituras Sagradas como a única Palavra de Deus que se deve ouvir, e também diminuem a glória e majestade de Deus, como ocorre no teísmo aberto e nas teologias da libertação. Para estes, “a alternativa é crer em um deus que tem o nome, mas não as qualidades do Deus revelado nas Escrituras, e não passa de uma simples capitulação ao marxismo”.32 Mesmo o ser humano é estranho à esquerda – não há interesse no destino da pessoa real e concreta, mas apenas na emancipação da classe proletária, oprimida e alienada.33 

Há um esforço consciente de cooptar o que for necessário para dar respeitabilidade a esta tentativa de fundir o esquerdismo com uma revisão da fé cristã. O legado de Dietrich Bonhoeffer é um exemplo desta associação a serviço do marxismo. Cita-se como apoio a uma interpretação esquerdista de Bonhoeffer seu exemplo de resistência ao nazismo e algumas frases de sua correspondência, Resistência e submissão. Mas não há preocupação de colocar o mártir alemão em contexto.34 Como um teólogo alistado no serviço de inteligência militar (Abwehr), amigo de militares nacionalistas que ansiavam por uma paz em separado com a Inglaterra e os Estados Unidos para, aliados a estes, atacarem a União Soviética, pode ser usado como inspiração para uma aproximação entre cristãos e esquerdistas, ou como precursor da teologia da libertação?

Em um apêndice de sua tese de doutorado, escrita em 1927, Bonhoeffer tratou da questão da igreja e do proletariado.35 Ele afirmou a necessidade da igreja evangélica alemã pregar o evangelho ao proletariado, que vivia em miséria e isolamento. E isso se daria quando a igreja parasse de se dirigir apenas à burguesia, que usufruía segurança, relações familiares ordenadas e relativa cultura; se a igreja não anunciasse o evangelho ao proletariado, este seria seduzido pelos socialistas. Para o teólogo alemão, o que estava em jogo era a exclusividade do evangelho, Deus em juízo e graça. Como ele conclui, o evangelho não pode ser confundido com o socialismo, e não será por meio desta ideologia que o Reino de Deus virá à terra. Este será consumado somente por meio do evangelho.

Portanto, o objetivo dos esquerdistas é adequar uma revisão da fé cristã a uma ideologia que lhe é completamente oposta. Por isso o ódio teológico (odium theologicum) que os teólogos liberais têm pela fé reformada. Pois, na verdade, as doutrinas da autoridade da Escritura, da predestinação e da aliança são as verdadeiras motivações de revoluções políticas de longo alcance, como as revoluções inglesa e americana, nos séculos XVII e XVIII.

Diante dos fatos, há os que apelam para o argumento emocional de que uma postura antiesquerdista é “insensível”, “descaridosa” e “alienada”. Não custa lembrar: cristãos fazem “o bem a todos”, e “principalmente aos domésticos da fé” (Gl 6.7-10), constrangidos por amor e lealdade a Jesus Cristo; não terceirizam seu amor, entregando-o ao arbítrio do Estado. Em Atos 2.41-47, passagem tão ao gosto desta mentalidade, os primeiros cristãos repartem o que possuem não constrangidos pelo Estado ou pelo imperador – mas o fazem livremente por amor ao Senhor Deus e ao próximo.

V. “Não abandoneis, portanto, a vossa confiança”
Helmuth James Graf von Moltke foi preso em janeiro de 1944 por fazer parte da resistência alemã contra o Partido Nacional Socialista. Levado ao tribunal, ele travou o seguinte diálogo com o juiz-algoz, pouco antes de sua morte, em 23 de janeiro de 1945:


No decorrer de seus discursos, [o juiz Roland] Freisler me disse: ‘O Nacional Socialismo assemelha-se ao cristianismo em apenas um aspecto: nós exigimos a totalidade do homem’. Não sei se os outros que estavam sentados ali puderam compreender o que foi dito, pois esse foi o tipo de diálogo travado entre Freisler e eu – um diálogo subentendido, visto que não tive a chance de dizer muita coisa – um diálogo por meio do qual passamos a conhecer um ao outro totalmente. Freisler era o único do grupo que me entendia completamente, e o único que percebia por que deveria me matar... No meu caso, tudo era determinado da forma mais severa. ‘De quem você recebe ordens, do outro mundo ou de Adolf Hitler? Onde você deposita sua lealdade e sua fé’?

Tal pergunta também não está ligada à luta entre a lealdade à esquerda (assim como a qualquer outra posição do espectro político) e a exclusiva adoração ao Deus-Trindade, o único e verdadeiro soberano e rei?

A frase decisiva no processo foi: ‘Herr Conde, o cristianismo e nós, nacional socialistas, temos apenas uma coisa em comum; uma única coisa: nós reivindicamos a totalidade do homem’. Eu gostaria de saber se ele realmente compreendia o que havia dito ali. (...)

Mantive minha posição (...) não como um protestante, não como um proprietário de terras, não como um nobre, não como um prussiano, nem mesmo como um alemão... Nada disso, mantive minha posição como um cristão e nada mais... 36

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1Santo Agostinho, Comentário aos Salmos, 39,1 (São Paulo: Paulus, 1997), p. 635-636.
2Para esta conceituação e bibliografia, cf. Franklin Ferreira, Curso Vida Nova de teologia básica: Teologia sistemática (São Paulo: Edições Vida Nova, 2013), p. 210-212. Neste livro também estabelece-se uma diferenciação entre a posição fundamentalista evangélica de rejeição do espaço público e o desenvolvimento de uma compreensão reformada, que entende Deus como o senhor absoluto de toda a realidade (p. 212-218).
3Para o significado de autoritarismo, cf. Norberto Bobbio; Nicola Matteucci; Gianfranco Paquino, Dicionário de política (Brasília: UnB, 1986), p. 94-104. Para uma conceituação de totalitarismo, exemplificado na Alemanha nazista e na União Soviética comunista, cf. Hannah Arendt, Origens do totalitarismo (São Paulo: Companhia das Letras, 1989), p. 339-531.
4Publicado na revista Ultimato, nº 346. Para uma análise deste texto, cf. Jonas Madureira, Tolerância: a atitude própria de toda alma robusta, http://www.teologiabrasileira.com.br/teologiadet.asp?codigo=366.
5Rotular o Partido Nacional-Socialista Alemão (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiters Partei) como “extrema direita” é somente a repetição de um cliché comum que, admito, é muito popular, mas não se coaduna com a realidade. Os líderes do Partido Nazista se viam como legítimos socialistas, desprezando a aristocracia, o livre mercado, o capitalismo e a democracia liberal. Foram comunistas estalinistas que ajudaram as forças armadas alemãs a se rearmarem – o que era proibido pelo Tratado de Versalhes –, e o treinamento da força aérea e das forças blindadas alemãs se deu em território soviético, na década de 1930. Em 1934 havia moedas nazistas cunhadas com a foice e o martelo (basta uma procura no Google Imagens, por “Tag Der Arbeit”). E, no começo da Segunda Guerra, nazistas e comunistas tinham um pacto de não-agressão. Inclusive, duas semanas após a invasão alemã da Polônia, os soviéticos a invadiram, pois a partilha daquele país era parte do pacto de não agressão teuto-soviético. No conjunto, os dois totalitarismos foram responsáveis por alguns dos maiores genocídios da história, como o Holocausto judeu (Shoah) efetuado pelos nazistas, e o genocídio ucraniano (Holodomor) e o Grande Terror, perpetrados por Stalin. Portanto, em última instância, tanto o comunismo como o nazismo são socialismos, sendo o primeiro um socialismo de classe e internacional, e o segundo um socialismo étnico e nacionalista. E só houve guerra entre os dois totalitarismos porque a extrema-esquerda tem caráter autofágico, multiplicando as dissensões internas quando as externas arrefecem – como ocorreu com Stalin, por exemplo, que com medo de traição mandou matar milhares de líderes do partido e do alto comando das forças armadas no Grande Expurgo, entre 1934-1939. Na atualidade, o neonazismo ressurge nas cidades da antiga Alemanha Oriental comunista. Para uma introdução a esta classificação do nazismo e comunismo, cf. Alain Besançon, A infelicidade do século (Sao Paulo: Bertrand Brasil, 2000).
6Chega-se a uma cifra de 85 a 100 milhões de mortos por comunistas no século XX. Cf. Stephanie Courtois (org.), O livro negro do comunismo (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999). Aos nazistas são atribuídos cerca de 20 milhões de mortos.
7Denis Lerrer Rosenfield, “O embuste ideológico”, em O Globo: http://oglobo.globo.com/opiniao/o-embuste-ideologico-11167368. Agradeço a Rodrigo Majewski, professor do Instituto Bíblico Esperança, em Porto Alegre-RS, por me chamar a atenção a este ponto.
8Wolfhart Pannenberg, Teologia Sistemática. vol. 3 (Santo André: Academia Cristã & São Paulo: Paulus, 2009), p. 767, 828.
9Ainda assim, deve-se tomar cuidado em não se cair no dualismo esquerdista (ver tópico IV abaixo) e supor que não há inteligência e/ou honestidade na centro-esquerda. Reconheço na socialdemocracia uma esquerda legítima, da qual se pode discordar com respeito e abertura ao diálogo. Mas, curiosamente, quando na presidência da república brasileira, esta socialdemocracia foi rotulada de “conservadora”, “direitista” e “neoliberal” por partidos de esquerda e extrema-esquerda.
10Em 6 de março de 2014 quatro ex-presidentes da América Latina condenaram a repressão na Venezuela: http://brasil.elpais.com/brasil/2014/03/06/internacional/1394125471_182731.html. Os autores da declaração conjunta foram Fernando Henrique Cardoso, Oscar Arias Sánches, Ricardo Lagos e Alejandro Toledo. Cf. o depoimento de Renato Vargens, “Relato daquilo que eu vi na Venezuela de Nicolás Maduro”, em http://renatovargens.blogspot.com.br/2014/04/coisas-que-eu-vi-na-venezuela.html.
11Ainda que a fé de quase todos os Pais Fundadores fosse deísta, a crença na divindade desempenhava papel vital na interpretação da Declaração de Independência e, especialmente, da Constituição dos Estados Unidos. Cf. David Holmes, The Faiths of the Founding Fathers (New York, NY: Oxford University Press, 2006). Outra razão para a crise do bipartidarismo seria a ingerência política do FED sobre os partidos políticos dos Estados Unidos.
12Sobre essa conceituação, cf. a entrevista no programa “Painel”, da Globo News, com Luiz Felipe Pondé, Reinaldo Azevedo e Bolívar Lamounier, sob a mediação de William Waack: http://www.youtube.com/watch?v=lwEUK8_E60k.
13De acordo com Marco Antônio Villa, há no Brasil “uma tradição antidemocrática solidamente enraizada e que nasceu com o positivismo, no final do Império. O desprezo pela democracia foi um espectro que rondou o nosso país durante cem anos de república. Tanto os setores conservadores como os chamados progressistas transformaram a democracia em um obstáculo à solução dos grandes problemas nacionais, especialmente nos momentos de crise política”. “Ditadura à brasileira”, Folha de São Paulo Opinião, 5 de março de 2009, em:

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0503200908.htm. Cf. também Nelson Paes Leme, “Os donos do poder”, em http://oglobo.globo.com/opiniao/os-donos-do-poder-12305436.


14Segundo o Democracy index 2012 produzido pela revista The Economist, o Brasil está em 44º no ranking da democracia, com as seguintes avaliações: geral: 7.12; processo eleitoral e pluralidade: 9.58; governança: 7.50; participação política: 5.00; cultura política: 4.38; liberdades civis: 9.12. Os países ranqueados até o 25º lugar são considerados “democracias completas”; do 26º até o 79º, “democracias falhas”; do 80º até o 116º, “regimes híbridos”; do 117º até o 167º, “regimes autoritários”. A Venezuela está em 95º, como um regime híbrido, com avaliação geral de 5.15 e Cuba está em 127º, um regime autoritário com avaliação geral em 3.52. Deve-se destacar que desde 2006 tanto as avaliações do Brasil como da Venezuela caíram. Cf. Democracy index 2012: Democracy at a standstill – A report from The Economist Intelligence Unit, em: http://pages.eiu.com/rs/eiu2/images/Democracy-Index-2012.pdf.
15Este ponto pode ser ilustrado na campanha de difamação sistemática contra a jornalista do SBT, Rachel Sheherazade, patrocinada por sindicatos e partidos de esquerda e extrema-esquerda. Os mesmos setores silenciaram quando um obscuro professor de filosofia, esquerdista, postou em seu Twitter um desejo para 2014: o estupro de Sheherazade.
16um exemplo sintomático: “Sininho”, a jovem ativista do grupo dos Black Blocs, foi insultada na rua como “patricinha hipócrita” por passageiros de ônibus. Cf. http://oglobo.globo.com/rio/sininho-chamada-de-patricinha-hipocrita-ao-deixar-delegacia-11573691.
17O PSOL é um partido de extrema-esquerda, que tem entre seus fundadores um terrorista italiano (Achille Lollo) e que lutou para dar asilo a outro terrorista italiano (Cesare Battisti).
18Para aludir à famosa frase de Karl Marx em O 18 brumário de Luís Bonaparte, “a história se repete, primeiro como tragédia, depois como farsa”, recomendo o filme O Grupo Baader Meinhof (2008), que conta a história do grupo de extrema-esquerda Fração do Exército Vermelho (RAF).
19O ex-militante de esquerda Augusto de Franco comentou que havia a tática de provocar a polícia para obter respostas violentas e, assim, desacreditar as instituições responsáveis pela ordem. Cf. http://globotv.globo.com/globo-news/entre-aspas/v/entre-aspas-discute-a-atuacao-dos-black-blocs-na-morte-do-cinegrafista-santiago-andrade/3147060.
20Cf. Merval Pereira, “O futuro da democracia”, em O Globo: http://oglobo.globo.com/pais/noblat/post.asp?blogadmin=true&cod_post=526563&ch=n: “Segundo a Freedom House, um centro de estudos nos Estados Unidos dedicado à análise da liberdade no mundo, 2013 foi o oitavo ano seguido em que a liberdade global declinou”.
21Como jornalistas da TV Globo atribuíram a morte do cinegrafista inicialmente à Policia Militar, Alon Feuerwerker considerou 7 de fevereiro de 2014 como “o dia em que a TV russa salvou o jornalismo brasileiro”, por causa das imagens da agência de notícias russa Ruptly, que foram fundamentais para descobrir que o artefato que vitimou Santiago Andrade foi lançado por Black Blocs.
22 VAR-Palmares chegou a planejar a execução (ou, em linguagem revolucionária, “justiçamento”) de militares. Cf. http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,var-palmares-planejou-execucao-de-militares,705934,0.htm?p=1. Ex-militantes, como Fernando Gabeira, confessam que os programas de seus grupos realmente incluíam a “ditadura do proletariado” no Brasil. Cf. http://www.youtube.com/watch?v=8VtXhnxWHC0. Cf. também Marco Antonio Villa, sobre o conturbado período da ditadura: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,golpe-a-brasileira,1131917,0.htm.
23f. http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/02/1407239-adolescente-e-agredido-a-pauladas-e-acorrentado-nu-a-poste-na-zona-sul-do-rio.shtml.
24Tal procedimento ilustra um uso ideologicamente contaminado dos direitos humanos. Cf. Ruy Fabiano, “Direitos humanos seletivos”, O Globo, http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2014/02/15/direitos-humanos-seletivos-524517.asp.
25Demétrio Magnoli, “Causa mortis”, O Globo, http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2014/02/13/causa-mortis-524204.asp.
26Outro elemento que vale a pena ser destacado é a culpa difusa que esses jovens de família abastada provavelmente sentem pela desigualdade, uma culpa que recebe nome e solução nas ideologias de esquerda. Cf. Norma Braga Venâncio em A mente de Cristo: conversão e cosmovisão cristã (São Paulo: Vida Nova, 2012), p. 179-181.
27Cf. John M. Ellis, em Literature Lost (New Haven & Londres: Yale University Press, 1997), que analisou o fenômeno chamado por ele de “lógica do tudo-ou-nada” (all or nothing logic) no campo das ciências literárias nas universidades americanas, tomadas pelo pensamento de esquerda.
28Richard J. Sturz, “O marxismo e a fé cristã”, em Colin Brown, Filosofia e fé cristã (São Paulo: Vida Nova, 2007), p. 274.
29Karl Barth, “O primeiro mandamento como axioma teológico”, em Walter Altmann (org.), Karl Barth: Dádiva & louvor; artigos selecionados (São Leopoldo: IEPG & Sinodal, 1996), p. 127-139.
30 Para a teologia anti-imperial de Paulo, cf. N. T. Wright, Paulo: novas perspectivas (São Paulo: Loyola 2009), p. 83-106. 
31Cf. Eberhard Busch, “Igreja e política na tradição reformada”, em: Donald McKim (ed.), Grandes temas da tradição reformada, p. 160-175. A questão de fundo aqui é a legitimidade do Estado. A comunidade cristã honra o Estado quando este é legítimo, inclusive servindo-o, mas resiste-o quando se torna não-legítimo. Para tal, é necessário distinguir entre ordem e arbítrio, democracia e tirania, liberdade e anarquia, etc. Cf. Karl Barth, “Comunidade cristã e comunidade civil”, p. 289-315.
32Richard J. Sturz, “O marxismo e a fé cristã”, p. 277.
33Richard J. Sturz, “O marxismo e a fé cristã”, p. 268-271.
34Isso ocorre tipicamente nos cursos de graduação em teologia, ao tratar de teologia contemporânea; ensinam-se alguns temas da teologia de Barth e Bonhoeffer, por exemplo, mas há pouco ou nenhum esforço de inseri-los no contexto intelectual, político ou social da Europa ocidental das décadas de 1910 a 1940. Cf. especialmente Dean G. Stroud (ed.), Preaching in Hitler’s Shadow: Sermons of Resistance in the Third Reich (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2013), p. 3-48.
35Dietrich Bonhoeffer, Sociologia de la Iglesia: Sanctorum Communio (Salamanca: Ediciones Sígueme, 1969), p. 248-251. Para um exemplo de resistência ao totalitarismo cubano, baseado em Bonhoeffer, cf. a história do pastor batista Mario Felix Lleonart Barroso, autor do blog cubanoconfesante.com, em “Cuba Case Study: Bonhoeffer-Inspired Pastor Arrested After Blogs, Tweets, and D.C. Trip”: http://www.christianitytoday.com/gleanings/2014/january/cuba-case-study-pastor-mario-lleonart-arrested-csw.html.
36Cf. Michael Haykin, Palavras de amor (São José dos Campos: Fiel, 2011), p. 139-140. Este trecho é de uma carta escrita da prisão de Tegel para sua esposa, Freya, em 11 de janeiro de 1945. Moltke era luterano, e membro do Círculo de Kreisau, de resistência não violenta ao nazismo, mas foi executado na prisão de Plötzensee, em Berlim, na esteira do fracasso da Operação Valquíria.

domingo, 27 de abril de 2014

A eterna noite de angústias Expressionistas de Julien Green


 - Chico Lopes in http://www.verbo21.com.br/v5/index.php?option=com_content&view=article&id=60:a-eterna-noite-de-angustias-expressionistas-de-julien-green-chico-lopes&catid=46:resenha-e-ensaios-janeiro-2011&Itemid=127






Por Chico Lopes

Esqueceu-se Julien Green, que foi muito amado por Lúcio Cardoso e Clarice Lispector, no Brasil? Não sei. Com as novas gerações que escrevem por aqui, parece não haver lugar para o tipo de angústia expressionista dos grandes livros de Green. Aliás, vamos ser claros, na ânsia de serem “pop” ou estrelinhas midiáticas, boa parte dos novos escritores tem mesmo é pouquíssima cultura literária e uma pressa que anula muitos valores fundamentais.

Americano formado na cultura francesa, Green foi um fenômeno nas letras francesas do século passado. Morreu em 1998, e sua vida foi marcada por uma conversão ao catolicismo em 1916. Mas o fenômeno que representou é de difícil classificação. Homossexual, seus livros exalam uma aspiração à pureza que se deteriora face à sordidez muito concreta e anti-idealizadora do mundo. Conceitos como o Mal, o Inferno e o Pecado, que para os novos escritores podem parecer simplesmente ridículos, têm lugar entranhado em sua obra. Talvez a pouca densidade moral da literatura atual não tenha mesmo lugar para um escritor tão peculiar quanto ele.

Não li todo o Green, claro, mas acho que não está integralmente traduzido no Brasil (se alguém tiver informações, agradeceria). Li “Adrienne Mesurat”, que me pareceu sua obra-prima, “Leviatã”, um livro vigoroso, e foi só. Faz pouco tempo, descobri um Green que não conhecia em sebo – “Meia-Noite”, de uma editora que nem sei se ainda existe, a Mandarim. Não tinha a menor informação sobre este romance.




Green se projeta com muita força em suas heroínas. Quem ler “Adrienne Mesurat”, achará que está topando com a confirmação da noção de que a Terra é lugar de expiação e os seres humanos se encontram à solta para torturarem-se mutuamente, demônios sem cura. O ideal romântico de Adrienne é um médico que ela só vê à distância, sem jamais tocar. Ela tem um pai que é um horror, em termos de repressão, e vive num sufoco provinciano sem limites. A sua tentativa de fugir aos tentáculos do egoísmo, da aridez e da solidão sem remédio dará num episódio inteiramente patético, e o final do livro é incrível. Em “Meia-Noite”, a heroína chama-se Élisabeth, e prolonga o mundo peculiar de Green.

Mais uma vez, é uma mulher predestinada a estranhos encontros e a uma luta incessante contra a hostilidade de um mundo em que a maldade, o egoísmo mais empedernido e a solidão mais devoradora dão o tom. Ela nunca está em repouso: salta de um acontecimento para outro, de menininha órfã para jovem bela, passando de um lar de tias ferozes e sinistras como harpias para uma casa burguesa onde terá de lutar contra a inveja de duas irmãzinhas feias, até acabar em Frontfroid, uma mansão particularmente estranha onde Green faz surgirem seres que são verdadeiras alegorias expressionistas. O romance, a esta altura, entra decididamente num onirismo meio de pesadelo. Parece um conto-de-fadas enlouquecido.

O acontecimento que dá origem a toda a história é a morte da mãe de Élisabeth, que acontece de um modo tipicamente greeniano: ela vai até uma determinada colina onde deveria ser vista por um homem que acenaria para ela de dentro de um trem que deveria passar naquele momento. Como isso não acontece, mata-se.

Esse desejo de colher um ideal para sempre inacessível vem de “Adrienne Mesurat” – para ser notada pelo médico que ama à distância, Adrienne quebra o vidro de uma janela, ferindo-se as mãos. O amor romântico é um desejo fadado ao total malogro, em Green. Pode-se especular se o homossexual que nele havia era muito mal aceito por ele mesmo, fazendo surgir a inevitável associação entre sexo e impureza.

Green parece ter paixão decisiva por esse tipo de romantismo desesperado, desejoso de um Absoluto que a realidade poda, implacavelmente. O médico que Adrienne ama está longe de sequer saber quem ela é. O homem que a mãe de Élisabeth amou, arrependido por ter causado a sua morte, perseguirá a órfã até conseguir torná-la prisioneira em Frontfroid. É um certo Sr. Edme, que ninguém vê, que vive com a casa cheia de hóspedes os mais esquisitos e “troca a noite pelo dia”. Quando ele aparece, o romance já se encaminha para o fim e Élisabeth está apaixonada por Serge, um jovem primitivo que também mora na casa, sugerindo boa dose de ambigüidade.

O Sr.Edme é menos um homem que uma ideia. Uma dessas ideias diabólicas e estranhíssimas às quais, como em “Leviatã”, livro também muito onírico, Green consegue dar uma encarnação verossímil.

Aliás, é essa a atmosfera típica de seus romances: a narrativa obedece ao realismo tradicional até certo ponto, mas é profundamente alegórica, anti-realista, e, no entanto, as personagens parecem dotadas de uma vida profunda cuja verossimilhança não parece poder ser posta em dúvida. Green empresta sua vida profunda a elas, donde a estranha concretude assumida pelo fantasmagórico. É um poeta da prosa. Pode-se entender por que Clarice Lispector tinha interesse por sua obra: sua, digamos, banalidade, está inchada de transcendência, de uma inquietação que parece vir de regiões infernais, realmente. Green, como católico, acreditava muito mais no Mal do que nas possibilidades de redenção do gênero humano, decididamente. Não há muitos respiradouros “celestiais” e nem vaga possibilidade deles nas atmosferas áridas nas quais ele se move.

Isso pode tornar a sua obra impalatável, para o leitor de hoje em dia, e não admira que pouco se fale dele. Mas, para quem aprecia livros de fatos bem escritos e com profundezas consideráveis, ele nunca sairá de circulação, sem dúvida nenhuma. Haverá sempre quem compreenda uma alma como a de Green, nalgum canto do planeta.

Lembranças tropicais

por Perry Anderson in http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-61/questoes-bioliterarias/lembrancas-tropicais





As diferenças e semelhanças de Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa na literatura e na política até publicarem seus livros de memória



Como formas de escrever sobre o passado, memórias e autobiografias são empreitadas diferentes, apesar de na prática não se sobreporem. No limite, um livro de memórias pode recriar um mundo ricamente povoado por pessoas, sem contudo falar muito sobre o próprio autor. Uma autobiografia, em compensação, pode assumir a forma de um retrato puro de si, no qual o mundo e os outros aparecem apenas como uma mise-en-scène para a aventura íntima do narrador. Ao recontar sua vida, romancistas já produziram atos de bravura em ambos os gêneros.

Entre as obras modernas, To Keep the Ball Rolling [Para Manter a Bola Rolando], de Anthony Powell – quatro volumes agradáveis, embora lacônicos –, é uma obra-prima do primeiro gênero. O breve As Palavras, de Sartre, é talvez o maior exemplo do segundo. Viver para Contar, de Gabriel García Márquez, é classificado como livro de memórias por seus editores, mas há certa dúvida de que, no conjunto, se enquadre nessa categoria. Márquez é, obviamente, um lendário contador de histórias. Além disso, possui uma aguda inteligência autorreflexiva, como podemos observar emCheiro de Goiaba, em que reproduz suas conversas biográficas com Plinio Apuleyo Mendoza.

Em Viver para Contar, Márquez exerce com comedimento esse outro lado de seus dons. Por opção artística, construiu um livro de memórias mais próximo, na forma, de um romance do que jamais se tenha escrito. Começa com a chegada de sua mãe a Barranquilla, a fim de levar o filho – então com 22 anos – para vender a casa da família em Aracataca, viagem que fez com que se tornasse o escritor que é hoje; e termina com o ultimato escrito por ele durante um voo para Genebra, cinco anos depois, e que transformou uma paixão esquiva de adolescência em sua futura esposa. Entre esses dois coups de théâtre paralelos, o autor rememora sua vida até o momento em que deixou a Colômbia, em 1955, numa narrativa que obedece não aos padrões desordenados da experiência ou da memória, com toda a sua irregularidade, mas às regras de uma composição perfeitamente simétrica. O livro é dividido em oito capítulos de tamanhos praticamente idênticos – um arranjo que corresponde menos ainda à maneira como qualquer vida poderia ser de fato vivida, como que para sublinhar o fato de estarmos diante de outro artifício supremo.

esde o início de sua carreira, Márquez vem praticando dois estilos de escrita relativamente distintos: a prosa figurativamente carregada, já visível de maneira brilhante em seu primeiro livro de ficção, A Revoada: O Enterro do Diabo, que teve sua publicação rejeitada na época, com a concessão de que era “poética”; e a concisão objetiva de histórias como Ninguém Escreve ao Coronel ou reportagens como Notícia de um Sequestro. Se, tecnicamente, o registro de Viver para Contar fica entre os dois, o tom e o efeito do conjunto – e isso decorre da concepção das memórias – têm a grandeza viva e suntuosa de seus grandes romances. Estamos ali no mundo de Cem Anos de Solidão ou de O General em seu Labirinto, com sua densidade metafórica e seus diálogos típicos: sentenças curtas e sublimes, que funcionam quase como epigramas, de pungência inimitável e ironia bem-humorada.

O que o livro conta é a história da juventude de Márquez na Colômbia. Retratos vívidos de seus pais e avós criam um ambiente familiar dos mais estranhos. Então é mostrada sua infância, até os 8 anos, com o avô na zona bananeira da costa do Caribe; os primeiros dias de escola e a pobreza em Barranquilla, as férias num interior paradisíaco; a subida do rio Magdalena até um liceu nos Andes; o ingresso na universidade em Bogotá; uma descrição em primeira mão dos tumultos apocalípticos na capital após o assassinato do principal político populista do país, Jorge Eliécer Gaitán; o retorno à costa para fugir dos distúrbios; os primeiros anos como jornalista em Cartagena; o entusiasmo literário e a dissipação boêmia em Barranquilla; e, por fim, o trabalho regular como repórter em Bogotá e a ida ao exterior para cobrir a conferência de Genebra, em 1955. Tudo isso com uma grande variedade de incidentes impressionantes, detalhes intrigantes e uma sorte extravagante que poucas obras de ficção seriam capazes de igualar.

No entanto, o resultado não é um Bildungsroman [romance de formação] do autor, cuja personalidade raramente está em foco, mas a recriação de um universo assombroso, a costa caribenha da Colômbia na primeira metade do século XX. Quem acha que a contraparte factual da ficção de Márquez é, na melhor das hipóteses, uma pálida cópia dela pode ficar tranquilo. Uma cena impressionante atrás da outra, um personagem inesquecível atrás do outro, cascatas de gestos que vão além da lógica e coincidências que vão alémda razão fazem de Viver para Contar um primo dos grandes romances. Esse primeiro volume é um grande e bem planejado edifício de imaginação literária. É tentador, assim, lê-lo apenas como uma obra de arte, independentemente de seu status de documento biográfico.

sso, contudo, seria diminuir seu interesse. Para entender o porquê, pode-se compará-lo com as memórias do escritor latino-americano ao qual é mais comumente associado, e que perde somente para ele em fama. Peixe na Água, de Mario Vargas Llosa, publicado há mais de uma década, tem uma estrutura menos convencional. Escrito após a derrota de sua candidatura à Presidência do Peru, em 1990, alterna capítulos sobre a sua infância e a adolescência, e a campanha para liderar o país quando tinha mais de 50 anos – um recurso de contraponto que ele usou mais de uma vez em seus livros de ficção, de Tia Julia e o Escrevinhador até O Paraíso na Outra Esquina. Nesse formato, os três anos de campanha presidencial ocupam mais espaço do que os 22 anos até a idade adulta. Só isso já faz desse um livro de memórias muito diferente do de Márquez. Ainda mais impressionantes, então, são as semelhanças entre suas primeiras experiências, misteriosamente próximas em muitos aspectos.

Ambos os escritores passaram os primeiros anos cruciais da meninice sob o teto de um avô que os adorava, o patriarca da família – um deles um veterano da guerra civil na Colômbia, o outro um fazendeiro e prefeito na Bolívia e no Peru. Os pais, que tinham empregos semelhantes (um era operador de telégrafo, o outro era operador de rádio) e fizeram casamentos semelhantes (contra a vontade da família da noiva, de classe social superior), eram ausentes: um vazio na estrutura emocional da infância, em que mesmo as mães desempenhavam papel secundário. A iniciação sexual veio cedo, em bordéis sobre os quais escrevem com afeição maliciosa. Mais tarde, casaram-se ambos com moças de sua cidade natal. Quando adolescentes, foram enviados contra a vontade para colégios internos pelos pais. Formaram-se com alegria nas províncias e experimentaram a chegada à capital como um infortúnio.

a universidade, mergulharam numa vida paralela de jornalismo e farras noturnas. Os dois mostraram habilidade para novelas de rádio, inspirados pelo mesmo dramalhão – El Derecho de Nacer,[1] de Félix B. Caignet (sem conotações anacrônicas antiaborto). Em ambos os casos, a grande descoberta literária da juventude foiFaulkner, cujos romances eles dizem que os marcaram mais fundo do que qualquer outro. Cada um encerra suas memórias no mesmo ponto decisivo, quando o escritor – logo depois de descobrir alguma coisa sobre o interior desconhecido de sua terra (El Chocó e Amazonas) – deixa o país natal em direção à Europa, para nunca mais voltar a fixar residência ali.

Uma série de paralelos desse tipo é um convite para algum futuro Plutarco das letras latino-americanas. Mas o que eles evidenciam, afinal, são os contrastes dos dois romancistas e de suas memórias. Apesar de todas as semelhanças entre as constelações familiares, Vargas Llosa tem – pelo lado materno – uma herança social mais privilegiada, um clã da elite de Arequipa que produziu o primeiro presidente peruano do pós-guerra, Bustamante y Rivero. Classe e cor o situavam mais alto na escala social, naquela que era uma sociedade rigidamente racista, do que um menino mestiço da Colômbia poderia chegar. A educação formal também os separou. Márquez explica quão desafeiçoado era dos estudos na universidade, onde seu pai insistira que cursasse direito e a qual acabou por abandonar. Vargas Llosa, ao contrário, teve um brilhante cursus estudantil e tornou-se assistente do maior historiador de Lima antes mesmo de se formar. A universidade foi uma experiência central para ele, enquanto para Márquez não significou nada. Essa diferença explica por que ele foi para a Europa muito mais cedo, com uma bolsa de estudos em Madri. E também por que, uma vez na Europa, nunca mais a deixou, tendo vivido essencialmente em Paris, Londres e Madri, viajando a passeio para Lima. Márquez, ao contrário, logo retornou à América Latina, terminando por se estabelecer no México.

s trajetórias divergentes têm seus correlatos atmosféricos no trabalho de cada um. Na vida dos autores, a história de seu país – medida em termos de matança, repressão, frustração, corrupção – dificilmente poderia ser mais sinistra, e isso, é claro, encontra expressão em seus romances. Mas os retratos que Márquez faz de sua terra natal, mesmo em seus piores momentos, são repletos de um afeto lírico, um amor imutável, que não têm equivalentes no mundo de Vargas Llosa, no qual a relação do escritor com sua terra de origem é sempre tensa e ambígua.

A razão dessa diferença pode ser encontrada em parte em suas situações individuais. Se, por um lado, a configuração das famílias de origem era de uma similaridade impressionante, a voltagem emocional era oposta. A mãe de Márquez, retratada de forma adorável por ele, era claramente uma mulher de grande força de caráter, capaz de administrar um marido determinado, ainda que inconstante, e onze crianças, tanto na prosperidade como na penúria. O pai de Vargas Llosa, que sem uma palavra abandonou a esposa no quinto mês de gestação e, dez anos depois, apareceu inesperadamente para retomá-la e cooptá-lo, foi, em contraste, um pesadelo traumático: temido pela esposa e odiado pelo filho. Sem nenhum apego por sua terra natal, acabou por emigrar para os Estados Unidos e morreu como faxineiro em Pasadena.

Mesmo o melodrama da primeira experiência sexual dos dois escritores, com roteiros conhecidos de honra e ultraje latinos, reflete esse contraste. Quando Vargas Llosa se casou com a tia – naquela família semidesenraizada, não por coincidência uma boliviana –, seu pai sacou um revólver, denunciou-o à polícia em Lima e ameaçou matá-lo com cinco tiros, como um cão raivoso. García Márquez, apanhado in flagrante com a esposa negra de um policial do interior, também teve de encarar uma pistola, assim como as palavras: “Traição na cama se resolve na bala.” Mas o sargento que sofreu a afronta deixou o menino apavorado escapar com a humilhação – em gratidão a um serviço médico prestado pelo pai de Márquez, e quando vistos pela última vez, bebiam juntos.

As duas cenas, composições de um machismo teatral, ilustram duas sociedades diferentes. A poesia e a humanidade do episódio colombiano capturam o espírito geral de Viver para Contar, assim como os laços de seu autor com a comunidade em que cresceu. Já o título de Peixe na Água inverte a história que na verdade conta. Isso é expresso de maneira mais precisa na primeira edição, intituladaUm Peixe Fora d’Água – uma inversão que não é a menos importante das estranhezas das memórias de Vargas Llosa como um todo. Embora escrito num momento de aguda decepção política, e inevitavelmente um tanto descolorido por ela, o livro é atravessado pelo horror a boa parte da vida peruana – social e cultural, bem como política –, que expressa de modo claro sentimentos havia muito existentes.

As consequências literárias dessa diferença não são as que se esperam. O rótulo de “realismo fantástico” – hoje desgastado pelo uso – é habitualmente atribuído aos romances de Márquez. Nunca se ajustou bem a Vargas Llosa, que não reconhece o adjetivo. “Tenho uma fraqueza invencível pelo assim chamado realismo”, observa ele em Peixe na Água. Um dos contrastes mais significativos da ficção de ambos decorre dessas opções distintas – ou talvez as dite. O grosso do trabalho de Vargas Llosa situa-se no presente peruano, contemporâneo à sua própria experiência. A principal exceção são os deslocamentos, não apenas no tempo, como também no espaço – o Brasil de A Guerra do Fim do Mundo ou a França e os mares do sul de O Paraíso na Outra Esquina.

Em compensação, nenhum dos grandes romances de García Márquez representa a época em que ele próprio se tornou escritor. Macondo desaparece na Grande Depressão. O patriarca pertence ao mundo rústico de Juan Vicente Gómez. Os tempos do cólera são vitorianos. O general expira com o fim da Restauração. A modernidade é alérgica à mágica. Os poderes de Márquez sempre necessitaram de uma volta ao passado para serem exercidos com plena liberdade.

claro que, na mente do público, o que provavelmente distingue os dois escritores é a imagem convencional de suas posições políticas – García Márquez como amigo de Fidel Castro, Vargas Llosa como devoto de Margaret Thatcher, figuras respectivamente da esquerda ecumênica e da direita liberal. Tal polaridade existe, é claro. Mas, ao olhar para a escrita em vez de para as filiações, percebemos um contraste mais impressionante. Vargas Llosa foi desde cedo, e assim permanece, um animal político. Como estudante em Lima durante a ditadura de Odría, foi um ativo militante comunista, levado para o partido por Héctor Béjar, que mais tarde, nos anos 60, comandaria a primeira guerrilha peruana; ao chegar à Europa, mergulhou na teoria marxista na qualidade de entusiasta da Revolução Cubana. No começo dos anos 70, quando rompeu com a esquerda por causa de Cuba, não se recolheu à literatura simplesmente, como outros, mas tornou-se um admirador apaixonado de Hayek e Friedman, e um dos principais defensores do capitalismo de livre mercado na América Latina. Sua candidatura à Presidência do Peru, com o apoio da direita tradicional, não foi um capricho repentino, mas consequência de uma década de atividade pública consistente. Logicamente, sua ficção – desde o primeiro retrato da academia militar em A Cidade e os Cachorros, passando pelas conspirações revolucionárias em Conversa na Catedral e História de Mayta, até A Festa do Bode – usa os conflitos políticos contemporâneos diretamente como tema organizador.

Esse nunca foi o caso de García Márquez, e Viver para Contar ajuda a explicar o porquê, apesar de permanecer algum mistério. Ele retrata um jovem, vindo da costa para o altiplano durante a adolescência, tão absorvido pelos temas literários – primeiro e acima de tudo pela poesia – a ponto de não ter praticamente nenhum interesse pelos assuntos públicos. A Colômbia já se encontrava num estado de grande tensão política em seus últimos anos de escola e, assim que chegou à universidade, o país sucumbiu à guerra civil. Em seu capítulo mais poderoso, Viver para Contar pinta um panoramaao estilo de Goya do terremoto social que engolfou Bogotá quando Gaitán, seu político mais popular, foi assassinado, em 1948. De sua pensión a três quarteirões de distância, García Márquez correu para a cena, chegando a tempo de presenciar o linchamento do assassino e a irrupção de uma maré de tumultos e saques que varreu a cidade. Mas sua reação, tal como se recorda, foi simplesmente voltar à pensão para terminar o almoço. Encontrando-o na rua, um parente mais velho – o qual se tornou um dos líderes da junta revolucionária que tentou direcionar os tumultos para um levante contra o governo conservador – instigou-o a participar dos protestos estudantis contra o assassinato. Em vão. Aterrorizado com a destruição e as mortes em massa nos dias seguintes, quando o Exército entrou na cidade para restaurar a ordem, seu único desejo era fugir.

A violênciaque devastou a Colômbia na década seguinte, opondo os liberais aos conservadores que se mantinham no poder, ceifou 300 mil vidas – uma catástrofe pior do que qualquer outra que o Peru tenha sofrido. Esse foi o pano de fundo histórico do início da carreira de Márquez como jornalista e escritor. Mas ele parece ter continuado misteriosamente intacto. Apesar de ser colunista regular de um diário de Cartagena, escreve que “no meu ofuscamento político da época, eu nem sabia que a lei marcial havia sido imposta de novo no país”. Em Barranquilla, pouco depois, “a verdade de minha alma era que o drama da Colômbia me atingia como um eco remoto, e me comoveu apenas quando transbordou em rios de sangue”. Essa confissão nos desarma, mas a distinção não se sustenta: o drama da Colômbia era o derramamento de sangue. Parece que a realidade foi que o jovem literato, inteiramente envolvido em descobertas e experimentos da imaginação, de fato ignorava o destino de seu país naqueles anos.

ra mais fácil agir assim nas cidades costeiras, já que o litoral do Caribe, embora não estivesse imune às chacinas sectárias, foi poupado do pior da violência que grassava nas fronteiras cafeeiras das terras altas. A identificação de Márquez com sua região – “o único lugar em que realmente me sinto em casa” – conferiu à sua escrita uma intensidade luminosa, mas parece também tê-lo protegido, ou cegado, dos padrões e forças mais amplos da nação. “A Colômbia sempre foi um país com uma identidade caribenha que se abria para o mundo pelo cordão umbilical do Panamá”, escreve. “Sua amputação forçada nos condenou ao que somos hoje: uma nação com uma mentalidade andina, cujas circunstâncias favorecem que o canal entre os dois oceanos pertença não a nós, mas aos Estados Unidos.”

O lamento é palpável e significativo. Não é exagero dizer que as terras elevadas dos Andes, que formam o cerne da sociedade colombiana, permanecem uma espécie de livro fechado para Márquez. Não há dúvida de que vem daí, em parte, o silêncio em Viver para Contar a respeito da guerra civil durante a qual se passa boa parte da história.

única aventura de Márquez na história contemporânea, Notícia de um Sequestro, humana e cativante como relato do episódio final da carreira de Pablo Escobar, confirma certo mal de altitude intelectual. Falta-lhe a compreensão do contexto social da guerra da droga na Colômbia ou mesmo uma visão crítica da oligarquia que a comandava. Lendo o livro, ficamos tentados a achar que, no fundo, Márquez permanece tão apolítico quanto era no início.

Isso é um erro, como mostra a sequência de Viver para Contar. Mas tanto suas memórias quanto sua ficção sugerem uma mente com uma maravilhosa sensibilidade intuitiva para o temperamento, as cores e os detalhes do mundo em que cresceu, sem muita consideração pela definição de suas relações ou estruturas. Por esse relato, é difícil situar com precisão a família de Márquez na escala social. Seu avô, apesar de ser representado como um patriarca com alguma substância, parece não ter sido originalmente mais do que um artesão, ainda que ourives; a base econômica da lendária casa de Aracataca – o pai é descrito como alguém que pediu a mão de uma “filha de família rica” – é obscura. Os altos e baixos das venturas do pai, da extrema pobreza ao conforto modesto – aparentemente sem relação com a proliferação dos onze filhos –, são apenas um pouco menos incompreensíveis. Com o passar do tempo, as conexões entre o clã se revelam: um tio na polícia de Cartagena, capaz de arranjar empregos; um professor em Bogotá, dono de uma grande livraria. Cabe a nós tentar adivinhar como se encaixava o jovem Gabito nessa hierarquia complicada de classe e cor.

O que dizer, finalmente, do autorretrato que emerge dessas memórias? Ele é curiosamente oblíquo. Márquez oferece um relato abrangente do desenvolvimento de sua vocação literária, do tempo de escola até mais ou menos seus 20 anos, e muitos incidentes cativantes ou encontros arrebatadores em sua jornada rumo à maturidade. Mas não está tão claro como ele era enquanto menino ou jovem. A autoconfiança que seu avô lhe deu na infância parece nunca tê-lo abandonado, salvo nas brevíssimas turbulências da adolescência. Mas há poucos sinais de ambição deliberada. Ele se fecha em sua timidez, mas obviamente era companhia animada, já que nunca lhe faltaram amigos. Mas não revela o quanto se empenhou em procurá-los ou até que ponto era visto apenas como um boêmio inconsequente.

Nas transações com o sexo oposto, as iniciativas de sedução partem na maioria das vezes das mulheres. Apesar de dizer que quando voltou a Barranquilla “tinha a timidez de uma codorna, que eu tentei contrabalançar com arrogância insuportável e franqueza brutal”, ele parece ter se dado bem em geral com parentes mais velhos e amigos, em todos os lugares por que passou. Com exceção de um conflito com o pai sobre a escolha de sua carreira, nenhuma grande discussão marca esse progresso. Ele cita apenas ocasionalmente os lados mais vulcânicos de sua personalidade – “acessos de raiva sem nenhum motivo”, “birras pueris” –, mas não oferece mais detalhes.

m vez de fazer uma autoanálise detida, Márquez oferece um espelho generoso aos seus contemporâneos. Viver para Contar contém uma abundante galeria de parentes, amantes, colegas, mentores e aliados, capturados num parágrafo ou em uma ou duas páginas. Isso basta para deixar impacientes os leitores anglo-saxões, mas é uma lealdade atraente, que distingue suas memórias das de Vargas Llosa. Um Peixe na Água, pensado desde o início para um público internacional, é mais tênue nesse sentido. As memórias de Márquez são destinadas aos leitores colombianos antes de tudo.

Elas anunciam seu princípio de construção no início, num manifesto gravado como epígrafe na abertura do livro: “A vida não é o que se viveu, mas o que se lembra, e como isso é lembrado para ser contado.” Tomado literalmente, é um convite à memória seletiva, com todas as facilidades de uma amnésia conveniente. Não há motivo para supor que Márquez tenha abusado de sua máxima. Mas é sempre legítimo perguntar em que medida as memórias correspondem aos fatos. Independentemente de quanta licença concedamos a um artista em sua reconstrução do passado, não valorizaríamos do mesmo modo o resultado se tudo se revelasse imaginário.

Nesse caso, a narrativa dá ensejo a alguns pontos de interrogação na margem. Sexo, política, literatura: cada um deixa uma penumbra de incerteza em seu entorno. Comentando “os modos de caçador furtivo” de seu pai, Márquez diz que houve um período em que ficou tentado a imitá-lo, mas logo descobriu que se tratava da “mais árida forma de solidão”. Nada em seu relato corresponde a essa breve afirmação. Em Cheiro de Goiaba, ele diz que, quando estava na universidade, pertenceu a uma célula do Partido Comunista Colombiano. Não há vestígio disso em Viver para Contar.

Entre os autores que o formaram, ele enfatiza Faulkner. Mas a afirmação de que “cada sentença deve ser responsável pela estrutura toda” e o uso celestial do adjetivo (ele diz ter aversão a advérbios), que é a marca de sua prosa, derivam de Borges, que ele pouco menciona. A saída do grupo de Barranquilla que produzia a revista literária Crónica, cadinho de seu primeiro florescimento como escritor, é apresentada como uma partida amigável, sem dificuldades ou ressentimentos. No entanto, entrega que renunciou ao cargo de editor num acesso de raiva algum tempo antes, por razões não especificadas. A ruptura pode ter sido mais dolorosa do que ele sugere.

Tais discrepâncias têm importância? A epígrafe as absolve. Mas uma vida e uma história nunca são a mesma coisa, e os interstícios entre elas – mais largos ou mais estreitos – são inevitavelmente parte do interesse de cada uma. Na luz resplandecente dessas memórias, há um brilho tênue à distância, próprio da latitude.




[1]No Brasil, exibida no formato de radionovela e telenovela, em diferentes versões, com o título O Direito de Nascer.

O filme “Ela” e nossos corpos

Atenção: Não é minha posição com relação a este filme, mas achei os argumentos e defesa dele bem interessantes (princípio dialético)


Por Gabriel Brisola in http://ultimato.com.br/sites/jovem/2014/04/25/o-filme-ela-e-nossos-corpos/




Cartaz do filme “Ela”

“Ela” é um filme curioso. Levou o Oscar de melhor roteiro e angariou algumas dezenas de prêmios em festivais. Está rodando em alguns cinemas no Brasil por essas semanas. Apesar de ainda estar no espectro hollywoodiano de narrativa – o desfecho não mente – e no que parece ser a absorção do “indie” pela indústria – os personagens não mentem -, “Ela“ levanta questões fabulosas. Aí está o trunfo do filme: ele é mais feliz em levantar questões do que resolvê-las, como aparentemente faz. Minha função aqui não é fazer uma crítica do trabalho, mas sim pensar as questões suscitadas e ver como elas atingem nossa fé. Mas antes, um resumo:

Theodore trabalha em uma empresa escrevendo cartas para pessoas que não têm tempo hábil: ele escreve para a esposa enquanto o marido está em uma viagem de negócios, para o aniversário de um ente querido… Ele não transcreve cartas, ele as escreve como se fosse mesmo o remetente que o contratou para tal. Em uma rotina solitária, ele se vê pensando na ex-mulher e em como agora estão em processo de divórcio. Ele sente falta da ex e parece não lidar muito bem com o fato. Evita encontros com os amigos e se vê sozinho em seu apartamento jogando vídeo game ou à noite fazendo sexo a distância por um dispositivo de áudio com alguma desconhecida aparentemente solitária.

É aí que uma novidade aparece: ele compra um sistema de inteligência artificial, “mais que um sistema, uma consciência”. E assim ele começa uma relação com Samantha, um sistema operacional altamente desenvolvido que, como o comercial diz, é uma consciência. Pensa, processa as situações, os dados e os sentimentos. E, como era de se esperar, Theodore começa um relacionamento amoroso com Samantha, que aparentemente preenche todas as suas necessidades e sonhos de mulher.

Samantha sente e responde aos sentimentos suscitados pelo protagonista e por ela mesma. A narrativa se desenrola sob essa perspectiva: uma relação com um ser completo, mas desprovido de corpo.

É significativo que o pôster do filme tenha como imagem Theodore. E é significativo que a primeira relação sexual do personagem com Samantha seja idêntica à relação que ele manteve com outra mulher, por áudio. Creio que não estamos longe de nos relacionarmos com Samantha. Na verdade, nós já nos relacionamos com ela.

Nossas conversas no Skype, por telefone, por Facebook, WhatsApp e etc, flertam com a ideia de que estamos conversando com nós mesmos – a hipótese do filme – ou com a ideia do outro em nós. O outro é sempre feito de uma projeção intensa e isso não é novidade, mas talvez o modo como nos comunicamos tem potencializado essa projeção. Conhecer e se relacionar com o outro é sempre um horizonte, nunca um lugar de chegada. E parece que falar consigo mesmo vai continuar sendo a regra no futuro próximo.

Posso parecer pessimista, mas a promessa das redes em unir as pessoas nunca me soou uma embarcação muito segura. Creio não estar sendo nostálgico nem sublinhando discursos conservadores. Os meios de comunicação realmente nos trouxeram coisas fabulosas – sou o primeiro a atestar -, mas não sou muito esperançoso em relação a certos aspectos.

E aqui gostaria de apontar um outro horizonte para pensar a questão. É relevante que nas Escrituras o corpo tenha um lugar importante. O “verbo se fez carne” para andar entre nós, Cristo ressurgiu em corpo, o corpo é habitação do Espírito Santo, Paulo ensinando que o sexo é a união de dois corpos, o corpo de Cristo na ceia, o pregador falando da decadência do corpo na velhice em Eclesiastes… Mais que uma negação do corpo, como nosso Cristianismo tem feito, a Bíblia aponta a importância do mesmo.

O corpo é porta para o conhecimento e contato com o mundo e o outro. Existe um mistério no corpo, no entrar em contato com o mundo, as coisas e os outros, com e através do corpo. Quem já sentiu saudades, depressão, euforia, amor, sabe exatamente onde a sensação se encontra no corpo. E mais ainda, existe um mistério do qual os místicos e santos falam: do corpo em contato com Deus.

Talvez o corpo seja mesmo importante nas nossas relações. Creio eu que sim. E talvez necessitemos de um novo pensamento ou um resgate do pensamento bíblico em relação ao corpo. Não cabe mais pensar o corpo apenas como adjacência, mas agora como uma estação a partir da qual a vida orbita. Espero que possamos cumprir com essa responsabilidade.


• Gabriel Brisola tem 24 anos, é formado em jornalismo e fotógrafo.

O legado de Graciliano Ramos



Ronaldo Correia de Brito em http://www.digestivocultural.com/ensaios/ensaio.asp?codigo=327&titulo=O_legado_de_Graciliano_Ramos&utm_source=twitterfeed&utm_medium=twitter



Em 1948, dez anos após a publicação de Vidas Secas, Homero Sena perguntou a Graciliano Ramos, numa entrevista:

― Acredita na permanência de sua obra?

E ele, um pessimista que reagiu ao convencionalismo da linguagem e sempre brigou com as palavras, convencido de que essa era uma briga essencial, de vida ou morte, respondeu amargo e com sinceridade:

― Não vale nada; a rigor até já desapareceu...


***

Nos setenta anos de publicação de Vidas Secas, o mais sereno e otimista dos romances de Graciliano, escrito sob o signo do silêncio como se tudo nele estivesse apenas velado, é possível reconhecer a permanência dessa cartilha de concisão. Permanência atestada não apenas na escritura do livro, mas nos autores brasileiros que surgiram posteriormente a ele e que se beneficiaram dos seus experimentos, pois Graciliano era um experimentador. Cada uma de suas obras é um tipo diferente de romance, como chamou atenção Aurélio Buarque de Holanda. Todas num estilo próprio, a linguagem trabalhada até a última possibilidade de apuro, mas sem ser literária num modo antigo, luso-brasileiro. Graciliano reagiu à impostura do convencionalismo da linguagem, tornou-se romancista da modernidade brasileira, por mais que tentem vinculá-lo ao naturalismo. Moderno, mas não "modernista", na conotação que ganhou o termo com os modernistas de São Paulo e do Rio de Janeiro.

Quando Vidas Secas foi publicado, em 1938, a técnica do escritor chegara ao máximo de pessoal, em quatro romances diferentes nos temas e na construção, mas que mantinham o mesmo estilo, "a mesma atitude filosófica perante o Homem, matéria prima da ficção", como observou Wilson Martins. De romance para romance ― Caetés (1933), São Bernardo (1934), Angústia (1938) ― Graciliano se desfaz gradualmente da carga de subjetivismo e angústia que o caracterizam, até que em Vidas Secas, que mais parece um livro de crônicas ou contos, alcança um alto grau de serenidade no estudo psicológico dos personagens: de Fabiano, de Sinhá Vitória, dos meninos, de Baleia e do soldado amarelo.

A paisagem sertaneja, quando descrita, é apenas para realçá-los. Ela só agrava o pessimismo do autor em relação ao mundo; acentua o silêncio das pessoas, que desaprenderam os modos de falar, único jeito de se livrarem de suas memórias. Os entraves de Fabiano, questionando a necessidade da fala, recriminando-se quando comete excessos, nada mais são que os questionamentos de Graciliano em torno da própria escrita, obcecado pela depuração, convencido de que o escritor luta menos com ideias do que com palavras. E que apenas por meio delas pode livrar-se do sofrimento da memória, mergulhando no esquecimento ao escrever.

***

Assumidamente avesso aos resultados da Semana de 22, Graciliano achava que os modernistas brasileiros confundiam o ambiente literário do país com a Academia e traçavam linhas divisórias, mas arbitrárias, entre o bom e o mau, querendo destruir tudo o que ficara para trás, condenando por ignorância ou safadeza muita coisa que merecia ser salva. Com a desconcertante franqueza de sempre, respondeu quando lhe perguntaram se era um "modernista": "Enquanto os rapazes de 22 promoviam seu movimentozinho, achava-me em Palmeira dos Índios, em pleno sertão alagoano, vendendo chita no balcão". Se o regionalismo criado por Gilberto Freyre em reação aos "modernistas" ajudou a polemizar a cena literária brasileira, também acentuou uma linha divisória que nunca se desfez, separando o Brasil em Nordeste e Sudeste.

Há quem se apegue ao uso que Graciliano faz de uma meia dúzia de vocábulos próprios do Nordeste ― que não poderiam ser outros, pois falsificariam Vidas Secas, para datar o romance ou classificá-lo como regionalista, num sentido que diminui sua grandeza. Desde o manifesto escrito por Gilberto Freyre, em que chama os modernistas de inimigos de toda espécie de tradicionalismo e de toda forma de regionalismo, confundem o movimento literário deflagrado por Freyre com regionalismo geográfico. Passaram a ser regionalistas, até os dias de hoje, os que escrevem fora da latitude sudeste, principalmente nordestinos, desde que refiram a linguagem e os cenários em que vivem. Uma danosa herança. Mesmo morando no Rio de Janeiro, a partir de 1937, Graciliano continuou emocionalmente vinculado à sua origem. Preferia o interior à cidade grande, e o contato íntimo com a terra e o povo. Reconhecia vir daí a força de escritores como Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e Jorge Amado.

Sendo um dos escritores modernos que melhor manejaram o nosso idioma, convencido de que não há talento que resista à ignorância da língua, deixou o exemplo de luta e querência pela palavra, a escrita como um difícil exercício de construção em meio ao silêncio. Preocupou-se com o estilo, mas não inventou um idioma, como Guimarães Rosa. Sem forçar comparações, pois acredito que os movimentos literários surgem como sintonias de um tempo em vários espaços do mundo, por afinidades estéticas, filosóficas e outras afinidades, reconheço nas obras de Graciliano e do francês Albert Camus um traçado que os aproxima. Essa analogia surpreendente ou evidente foi registrada por Lourival Holanda no seu livro Sob o signo do silêncio. Ele escreve: "Não cabe inquirir influências: o contato de Camus com o Brasil foi mínimo e tardio; Graciliano é já maduro quando conhece Camus". No entanto, ambos captam as ondas de seu tempo, escrevem obras em que reverbera o social, e antecipam mudanças no espírito literário.

Qual o legado de Vidas Secas para a literatura brasileira, nesses 70 anos? São muitas as respostas. Tornou-se quase estereótipo referir a exatidão, as frases curtas e limpas de excessos humanos, o ritmo dado às frases, a escolha certa das palavras, a eliminação de tudo o que não é essencial. Porém, o maior legado de Vidas Secas é o de uma escrita em que é possível reconhecer a linguagem no processo de tornar-se literatura.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado noTerra Magazine, em junho de 2009

sábado, 12 de abril de 2014

T. S. Eliot e a cultura



T.S Eliot, um dos maiores poetas da língua inglesa do século XX, nascido em 1888 nos EUA mudou-se para a Inglaterra em 1914. Morreu em 1965, de um enfisema pulmonar. Nos anos vinte conviveu com um grupo seleto de artista em Paris (como Woody Allen ilustra no seu filme "Meia Noite em Paris", mesmo que infelizmente [ao meu ver] a passagem de T.S Eliot tenha sido irrelevante e mal explorada no filme) este convívio com a poesia francesa, foi muito frutífero para a futura carreira como escritor. Em 1922 publica "The Wasted land" seu poema mais célebre e bem recebido pela crítica inglesa e estrangeira. Inicialmente utilizou-se do verso livre rimado, posteriormente regressa a métrica e estrofes fixas. Causando assim junto a Erza Paund e James Joyce uma revolução na literatura de língua inglesa.




The Hollow Men: Text of the Poem

Mistah Kurtz—he dead.

A penny for the Old Guy

I
We are the hollow men
We are the stuffed men
Leaning together
Headpiece filled with straw. Alas!
Our dried voices, when
We whisper together
Are quiet and meaningless
As wind in dry grass
Or rats' feet over broken glass
In our dry cellar

Shape without form, shade without colour,
Paralysed force, gesture without motion;

Those who have crossed
With direct eyes, to death's other Kingdom
Remember us—if at all—not as lost
Violent souls, but only
As the hollow men
The stuffed men.

II
Eyes I dare not meet in dreams
In death's dream kingdom
These do not appear:
There, the eyes are
Sunlight on a broken column
There, is a tree swinging
And voices are
In the wind's singing
More distant and more solemn
Than a fading star.

Let me be no nearer
In death's dream kingdom
Let me also wear
Such deliberate disguises
Rat's coat, crowskin, crossed staves
In a field
Behaving as the wind behaves
No nearer—

Not that final meeting
In the twilight kingdom

III
This is the dead land
This is cactus land
Here the stone images
Are raised, here they receive
The supplication of a dead man's hand
Under the twinkle of a fading star.

Is it like this
In death's other kingdom
Waking alone
At the hour when we are
Trembling with tenderness
Lips that would kiss
Form prayers to broken stone.

IV
The eyes are not here
There are no eyes here
In this valley of dying stars
In this hollow valley
This broken jaw of our lost kingdoms

In this last of meeting places
We grope together
And avoid speech
Gathered on this beach of the tumid river

Sightless, unless
The eyes reappear
As the perpetual star
Multifoliate rose
Of death's twilight kingdom
The hope only
Of empty men.

V
Here we go round the prickly pear
Prickly pear prickly pear
Here we go round the prickly pear
At five o'clock in the morning.

Between the idea
And the reality
Between the motion
And the act
Falls the Shadow
For Thine is the Kingdom

Between the conception
And the creation
Between the emotion
And the response
Falls the Shadow
Life is very long

Between the desire
And the spasm
Between the potency
And the existence
Between the essence
And the descent
Falls the Shadow
For Thine is the Kingdom

For Thine is
Life is
For Thine is the

This is the way the world ends
This is the way the world ends
This is the way the world ends
Not with a bang but a whimper.




Aqui está uma versão com referências
http://aduni.org/~heather/occs/honors/Poem.htm
Aqui a tradução
http://panorama-direitoliteratura.blogspot.com.br/2009/09/os-homens-ocos-t-s-eliot.html

sexta-feira, 4 de abril de 2014

[Repost]Os olhos dos pobres


Charles Baudelaire
De Le Spleen de Paris (Les Petits Poèmes en prose), 1869.



Quer saber por que a odeio hoje? Sem dúvida lhe será menos fácil compreendê-lo do que a mim explicá-lo; pois acho que você é o mais belo exemplo da impermeabilidade feminina que se possa encontrar.

Tínhamos passado juntos um longo dia, que a mim me pareceu curto. Tínhamos nos prometido que todos os nossos pensamentos seriam comuns, que nossas almas, daqui por diante, seriam uma só; sonho que nada tem de original, no fim das contas, salvo o fato de que, se os homens o sonharam, nenhum o realizou.

De noite, um pouco cansada, você quis se sentar num café novo na esquina de um bulevar novo, todo sujo ainda de entulho e já mostrando gloriosamente seus esplendores inacabados. O café resplandecia. O próprio gás disseminava ali todo o ardor de uma estréia e iluminava com todas as suas forças as paredes ofuscantes de brancura, as superfícies faiscantes dos espelhos, os ouros das madeiras e cornijas, os pajens de caras rechonchudas puxados por coleiras de cães, as damas rindo para o falcão em suas mãos, as ninfas e deusas portando frutos na cabeça, os patês e a caça, as Hebes e os Ganimedes estendendo a pequena ânfora de bavarezas, o obelisco bicolor dos sorvetes matizados; toda a história e toda a mitologia a serviço da comilança.

Plantado diante de nós, na calçada, um bravo homem dos seus quarenta anos, de rosto cansado, barba grisalha, trazia pela mão um menino e no outro braço um pequeno ser ainda muito frágil para andar. Ele desempenhava o ofício de empregada e levava as crianças para tomarem o ar da tarde. Todos em farrapos. Estes três rostos eram extraordinariamente sérios e os seis olhos contemplavam fixamente o novo café com idêntica admiração, mas diversamente nuançada pela idade.

Os olhos do pai diziam: "Como é bonito! Como é bonito! Parece que todo o ouro do pobre mundo veio parar nessas paredes." Os olhos do menino: "Como é bonito, como é bonito, mas é uma casa onde só entra gente que não é como nós." Quanto aos olhos do menor, estavam fascinados demais para exprimir outra coisa que não uma alegria estúpida e profunda.

Dizem os cancionistas que o prazer torna a alma boa e amolece o coração. Não somente essa família de olhos me enternecia, mas ainda me sentia um tanto envergonhado de nossas garrafas e copos, maiores que nossa sede. Voltei os olhos para os seus, querido amor, para ler neles meu pensamento; mergulhava em seus olhos tão belos e tão estranhamente doces, nos seus olhos verdes habitados pelo Capricho e inspirados pela Lua, quando você me disse: "Essa gente é insuportável, com seus olhos abertos como portas de cocheira! Não poderia pedir ao maître para os tirar daqui?"

Como é difícil nos entendermos, querido anjo, e o quanto o pensamento é incomunicável, mesmo entre pessoas que se amam

sábado, 29 de março de 2014

Educação Liberal 1 - Religiões Monoteístas dominantes

Para se ir além da mediocridade (que vem de algo médio, mediano), especialmente no Brasil, onde quase não se há modelos de verdadeira cultura cosmopolita é necessário um plano de estudo, nem que seja algo básico. Por isso vou pontuar algumas coisas aqui para servirem de passo a passo.


Mês 1 - Religião.

Semana 1
Gênesis
Deuteronômio
Evangelho de João
Epístola de São João
O Corão
Semana 2
Missa Negra - John Gray (o uso político do poder da religião)
Grahan Greene - O poder e a glória (a religião em contrabalanço com a pequenez humana)
Semana 2 & 3
Uma história da Cristandade v.1&2 - Kenneth Scott Latourette

P.s. 

Filmes:
O nome da Rosa
A Rainha Margot
O lobo de Wall Street (os trejeitos do personagem de Leonardo de Caprio são tirados dos pastores avivalistas americanos) - filme não recomendado para adolescentes.
Fé demais não cheira bem
O apóstolo (c/ Robert Duvall)


No mês que vem falarei da Literatura Americana e Brasileira a partir do Romantismo. Até lá.

sexta-feira, 7 de março de 2014

Análise de poemas



Um pouco do que seria nossa aula de aprofundamento:

Passos da leitura:
1. leia o poema de uma sentada - de uma vez (de preferência sonoramente, tentando pegar o ritmo)
2. procure o moto do poema - seu tema, a razão desse poema ter sido feito.
3. descubra as palavras chave.
4. descubra o conflito


Seus olhos

Seus olhos – se eu sei pintar
O que os meus olhos cegou –
Não tinham luz de brilhar,
Era chama de queimar;
E o fogo que a ateou
Vivaz, eterno, divino,
Como facho do Destino.
Divino, eterno! – e suave
Ao mesmo tempo: mas grave
E de tão fatal poder,
Que, um só momento que a vi,
Queimar toda alma senti...
Nem ficou mais de meu ser,
Senão a cinza em que ardi.

Análise:
Poema lírico, de natureza romântica, a incapacidade de contemplar toda a beleza da mulher (metonímia - os olhos/a mulher, que se contrapõem à ideia da cegueira). O fogo do amor é visto também como fonte de um poder perigoso, que deveria permitir a visão, mas na verdade provoca a cegueira e até mesmo a destruição do próprio amor ou do ser amante (como é o caso). Esse fogo e brilho vem do próprio objeto do amor e não de uma divindade em separado- apontando aí para a própria mulher como divina.

palavras-chave:
olhos, chama, fogo, divino/destino, poder/alma/senti

Estilo de época: Romantismo:
idealização da mulher e do amor
divinização de mulher e do amor
a alma como sofredora dos efeitos do amor
a tristeza pela incapacidade de se ver digno do ser amado
melancolia

Relembrando os passos
Passos da leitura:
1. leia o poema de uma sentada - de uma vez (de preferência sonoramente, tentando pegar o ritmo)
2. procure o moto do poema - seu tema, a razão desse poema ter sido feito.
3. descubra as palavras chave.
4. descubra o conflito

SONETO

Perdoa-me, visão dos meus amores,
Se a ti ergui meus olhos suspirando!...
Se eu pensava num beijo desmaiando
Gozar contigo a estação das flores!

De minhas faces os mortais palores,
Minha febre noturna delirando,
Meus ais, meus tristes ais vão revelando
Que peno e morro de amorosas dores...

Morro, morro por ti! na minha aurora
A dor do coração, a dor mais forte,
A dor de um desengano me devora...

Sem que última esperança me conforte,
Eu - que outrora vivia! - eu sinto agora
Morte no coração, nos olhos morte!

Análise:
Poema lírico, de natureza romântica, uma forma exagerada de buscar a atenção da amada a qual ele primeiro recrimina acusando-se de impropriedade (desculpa), mas pontuando que sua falta de limites se dá pelo fato de sonhar o futuro com ela. A indisposição dela aos desejos do poeta são sentidas como a proximidade da morte - o poeta avisa que por causa dela está perdendo seus melhores anos (minha aurora - metáfora para a juventude)

palavras-chave:
suspirando/desmaiando, dor, morrer, noturna, delirando, febre

Estilo de época: Romantismo (ultra-romantismo)
a contraposição entre amar e morrer
a alma como sofredora dos efeitos do amor
melancolia e o desejo de morte
amor como febre, delírio, desvario
a indicação que o poeta morrerá jovem ainda (prenúncio heroico)