domingo, 27 de abril de 2014
A eterna noite de angústias Expressionistas de Julien Green
- Chico Lopes in http://www.verbo21.com.br/v5/index.php?option=com_content&view=article&id=60:a-eterna-noite-de-angustias-expressionistas-de-julien-green-chico-lopes&catid=46:resenha-e-ensaios-janeiro-2011&Itemid=127
Por Chico Lopes
Esqueceu-se Julien Green, que foi muito amado por Lúcio Cardoso e Clarice Lispector, no Brasil? Não sei. Com as novas gerações que escrevem por aqui, parece não haver lugar para o tipo de angústia expressionista dos grandes livros de Green. Aliás, vamos ser claros, na ânsia de serem “pop” ou estrelinhas midiáticas, boa parte dos novos escritores tem mesmo é pouquíssima cultura literária e uma pressa que anula muitos valores fundamentais.
Americano formado na cultura francesa, Green foi um fenômeno nas letras francesas do século passado. Morreu em 1998, e sua vida foi marcada por uma conversão ao catolicismo em 1916. Mas o fenômeno que representou é de difícil classificação. Homossexual, seus livros exalam uma aspiração à pureza que se deteriora face à sordidez muito concreta e anti-idealizadora do mundo. Conceitos como o Mal, o Inferno e o Pecado, que para os novos escritores podem parecer simplesmente ridículos, têm lugar entranhado em sua obra. Talvez a pouca densidade moral da literatura atual não tenha mesmo lugar para um escritor tão peculiar quanto ele.
Não li todo o Green, claro, mas acho que não está integralmente traduzido no Brasil (se alguém tiver informações, agradeceria). Li “Adrienne Mesurat”, que me pareceu sua obra-prima, “Leviatã”, um livro vigoroso, e foi só. Faz pouco tempo, descobri um Green que não conhecia em sebo – “Meia-Noite”, de uma editora que nem sei se ainda existe, a Mandarim. Não tinha a menor informação sobre este romance.
Green se projeta com muita força em suas heroínas. Quem ler “Adrienne Mesurat”, achará que está topando com a confirmação da noção de que a Terra é lugar de expiação e os seres humanos se encontram à solta para torturarem-se mutuamente, demônios sem cura. O ideal romântico de Adrienne é um médico que ela só vê à distância, sem jamais tocar. Ela tem um pai que é um horror, em termos de repressão, e vive num sufoco provinciano sem limites. A sua tentativa de fugir aos tentáculos do egoísmo, da aridez e da solidão sem remédio dará num episódio inteiramente patético, e o final do livro é incrível. Em “Meia-Noite”, a heroína chama-se Élisabeth, e prolonga o mundo peculiar de Green.
Mais uma vez, é uma mulher predestinada a estranhos encontros e a uma luta incessante contra a hostilidade de um mundo em que a maldade, o egoísmo mais empedernido e a solidão mais devoradora dão o tom. Ela nunca está em repouso: salta de um acontecimento para outro, de menininha órfã para jovem bela, passando de um lar de tias ferozes e sinistras como harpias para uma casa burguesa onde terá de lutar contra a inveja de duas irmãzinhas feias, até acabar em Frontfroid, uma mansão particularmente estranha onde Green faz surgirem seres que são verdadeiras alegorias expressionistas. O romance, a esta altura, entra decididamente num onirismo meio de pesadelo. Parece um conto-de-fadas enlouquecido.
O acontecimento que dá origem a toda a história é a morte da mãe de Élisabeth, que acontece de um modo tipicamente greeniano: ela vai até uma determinada colina onde deveria ser vista por um homem que acenaria para ela de dentro de um trem que deveria passar naquele momento. Como isso não acontece, mata-se.
Esse desejo de colher um ideal para sempre inacessível vem de “Adrienne Mesurat” – para ser notada pelo médico que ama à distância, Adrienne quebra o vidro de uma janela, ferindo-se as mãos. O amor romântico é um desejo fadado ao total malogro, em Green. Pode-se especular se o homossexual que nele havia era muito mal aceito por ele mesmo, fazendo surgir a inevitável associação entre sexo e impureza.
Green parece ter paixão decisiva por esse tipo de romantismo desesperado, desejoso de um Absoluto que a realidade poda, implacavelmente. O médico que Adrienne ama está longe de sequer saber quem ela é. O homem que a mãe de Élisabeth amou, arrependido por ter causado a sua morte, perseguirá a órfã até conseguir torná-la prisioneira em Frontfroid. É um certo Sr. Edme, que ninguém vê, que vive com a casa cheia de hóspedes os mais esquisitos e “troca a noite pelo dia”. Quando ele aparece, o romance já se encaminha para o fim e Élisabeth está apaixonada por Serge, um jovem primitivo que também mora na casa, sugerindo boa dose de ambigüidade.
O Sr.Edme é menos um homem que uma ideia. Uma dessas ideias diabólicas e estranhíssimas às quais, como em “Leviatã”, livro também muito onírico, Green consegue dar uma encarnação verossímil.
Aliás, é essa a atmosfera típica de seus romances: a narrativa obedece ao realismo tradicional até certo ponto, mas é profundamente alegórica, anti-realista, e, no entanto, as personagens parecem dotadas de uma vida profunda cuja verossimilhança não parece poder ser posta em dúvida. Green empresta sua vida profunda a elas, donde a estranha concretude assumida pelo fantasmagórico. É um poeta da prosa. Pode-se entender por que Clarice Lispector tinha interesse por sua obra: sua, digamos, banalidade, está inchada de transcendência, de uma inquietação que parece vir de regiões infernais, realmente. Green, como católico, acreditava muito mais no Mal do que nas possibilidades de redenção do gênero humano, decididamente. Não há muitos respiradouros “celestiais” e nem vaga possibilidade deles nas atmosferas áridas nas quais ele se move.
Isso pode tornar a sua obra impalatável, para o leitor de hoje em dia, e não admira que pouco se fale dele. Mas, para quem aprecia livros de fatos bem escritos e com profundezas consideráveis, ele nunca sairá de circulação, sem dúvida nenhuma. Haverá sempre quem compreenda uma alma como a de Green, nalgum canto do planeta.
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